A cultura do cancelamento é a prática de organizar um boicote virtual de pessoas percebidas como desviantes. Ela pode levar a pessoa julgada ao esquecimento social. Essa cultura tem se espalhado pelas redes sociais, e suas dinâmicas provocam impactos significativos.
Desde o surgimento das redes sociais até a polarização política, as causas e consequências da cultura do cancelamento são complexas, revelando um cenário preocupante de linchamentos virtuais, injustiças e danos irreversíveis para aqueles que são alvo desse fenômeno.
A cultura do cancelamento tem consequências significativas para a sociedade. Ao priorizar a punição e a exclusão em vez do diálogo e da resolução construtiva de conflitos, o cancelamento prejudica a diversidade de ideias, desencoraja a participação ativa dos cidadãos e compromete a busca por entendimento mútuo e consensos democráticos.
Resumo sobre a cultura do cancelamento
A cultura do cancelamento é a prática de fazer julgamentos morais com o objetivo de isolar alguém do mundo virtual.
O advento generalizado das redes sociais tornou possível a disseminação de campanhas de ódio que se espalham pelo mundo todo em questão de minutos.
A conscientização e o engajamento da sociedade aumentaram em relação aos direitos individuais, e isso também favorece a cultura do cancelamento.
Outros fatores causadores da cultura do cancelamento são a fragmentação da sociedade em grupos identitários fechados e a polarização política.
Embora o cancelamento busque a responsabilização das pessoas pelos seus atos, os seus efeitos são mais negativos do que se imagina.
A cultura do cancelamento busca uma forma de justiça, mas acaba deteriorando a esfera pública onde a justiça é construída.
O que é cultura do cancelamento?
A cultura do cancelamento é a prática de organizar um boicote generalizado contra uma pessoa, geralmente uma figura pública, devido a comportamentos ou declarações ofensivas, injustificadas ou moralmente condenáveis.
O cancelamento ocorre por meio de intensas campanhas nas redes sociais, podendo assumir a forma de um linchamento virtual. O alvo dos canceladores pode ser levado ao repúdio público e perder trabalho, seguidores e patrocínios. O ostracismo virtual almejado pelo cancelamento também pode ser dirigido contra empresas, filmes e até mesmo livros.
Causas da cultura do cancelamento
Uma das causas da cultura do cancelamento está relacionada com o advento da internet e das redes sociais. A interação e a postagem de conteúdos nas plataformas digitais deram à opinião pública um novo espaço de expressão e engajamento. Alguns argumentam que isso tem facilitado a resposta a décadas de opressão, injustiças sociais e um desejo por mudanças reais. Então, a democratização das redes sociais deu voz a grupos que antes eram marginalizados e agora podem defender os seus direitos.
No entanto, essa conscientização também pode levar a um ambiente hipersensível a qualquer percepção de desvio das normas socialmente aceitas. O engajamento dos grupos de canceladores pode amplificar os erros e punir os desviantes de maneira desproporcional, disseminando ódio, intolerância e uma cultura de linchamentos virtuais.
Cultura do cancelamento nas redes sociais
O aumento do uso das redes sociais tem um papel fundamental na amplificação da cultura do cancelamento. Com a velocidade e alcance das informações online, é possível criar ondas de indignação em questão de minutos. O livro “Humilhado, como a era da internet mudou o julgamento público”, escrito pelo jornalista inglês Jon Ronson, investiga esses movimentos virtuais em que os usuários de uma rede social ganham voz e se sentem como justiceiros.
O livro apresenta uma série de relatos de indivíduos que foram publicamente humilhados e cancelados devido a erros, declarações controversas ou comportamentos inadequados. Um dos entrevistados foi o jornalista Jonah Lehrer, que teve sua reputação profissional arruinada quando um repórter descobriu distorções de fatos sobre Bob Dylan em seu livro “Imagine, How creativity works”.
Ao tentar pedir desculpas publicamente em um evento, Lehrer acabou aumentando ainda mais a ira dos internautas que o acompanhavam pelo Twitter. Após vender mais de 200 mil exemplares, a editora encerrou a edição dos livros em papel e retirou do mercado a sua versão digital. O escritor ainda teve que anunciar a sua própria demissão da tradicional revista “The New Yorker”.
Outra entrevistada por Ronson foi a americana Justine Sacco. Ela viu sua vida virar de cabeça para baixo quando, a caminho da África do Sul, ela postou uma piada sobre a epidemia de Aids no continente africano (“Indo para África. Eu espero não pegar Aids. É brincadeira, eu sou branca!”). Pessoas indignadas a aguardavam no aeroporto da Cidade do Cabo. Era apenas o começo de uma difícil jornada. Sacco foi demitida e entrou em depressão.
Enfim, um dos principais argumentos do livro de Jon Ronson é que o anonimato proporcionado pela internet amplifica o ódio e a intolerância, gerando um clima tóxico que propicia a cultura do cancelamento. Desse modo, pessoas que erram são eliminadas do debate, e, portanto, a sociedade não enxerga a evolução daquela pessoa após o ocorrido.
Consequências da cultura do cancelamento
Embora a cultura do cancelamento possa ser vista como uma forma de responsabilização, ela também traz consequências preocupantes. O cancelamento público pode causar danos psicológicos profundos, isolamento social e efeitos na saúde mental das pessoas envolvidas.
Além disso, há casos em que o cancelamento é baseado em emoções infundadas ou mal interpretadas, o que pode levar à injustiça e à destruição de reputações sem fundamento. É crucial avaliar criticamente os efeitos dessa cultura no tecido social e, mais especificamente, naquilo que o filósofo Jürgen Habermas chamou de esfera pública.
O filósofo alemão contemporâneo, teórico da Escola de Frankfurt, conceituou a esfera pública como um espaço de debate racional e público, onde os indivíduos podem discutir livremente questões de interesse comum, formular opiniões informadas e influenciar as decisões políticas.
Esse conceito implica a necessidade de uma troca de ideias aberta, inclusiva e baseada na argumentação lógica. No entanto, a cultura do cancelamento, com suas táticas de ostracismo e desprezo público, ataca os princípios fundamentais da esfera pública habermasiana.
Em vez de buscar a resolução construtiva de conflitos e a ampliação do entendimento mútuo, a cultura do cancelamento prioriza a punição e a exclusão daqueles que são considerados culpados de transgressões ou opiniões indesejáveis.
Desse modo, o cancelamento deteriora o debate aberto e prejudica a construção de consensos e entendimentos mútuos, em vez de contribuir para uma razão dialógica, uma ação comunicativa e eficaz.
Outra consequência da cultura do cancelamento é a autocensura generalizada. Com o medo de serem alvo de ataques virtuais, muitas pessoas optam por não expressar suas opiniões ou debater presentes controversos. Isso cria um ambiente de silenciamento e pode prejudicar a diversidade de ideias que circulam pela sociedade.
Fontes
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudo de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Petrópolis: Vozes, 1991.
HABERMAS, Jürgen. Teoria da ação comunicativa: Racionalidade da ação e racionalização social | Para a crítica da razão funcionalista. São Paulo: Editora Unesp, 2022.
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Lisboa: Editora 70, 2012.
RONSON, Jon. Humilhado: Como a era da internet mudou o julgamento público. Rio de Janeiro: Best Seller, 2018.