A apropriação cultural ocorre quando uma pessoa ou grupo social hegemônico em uma sociedade passa a reproduzir comportamentos, hábitos, vestuários, objetos, linguagens de grupos sociais marginalizados. Essa prática desinveste o significado sagrado ou político que esses últimos conferem aos elementos culturais, substituindo-os por outros significados, geralmente ligados ao entretenimento e à estética, promovendo o esvaziamento e colonização desses elementos sem, em contrapartida, gerar benefícios ao grupo que produziu aquela cultura.
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O que é apropriação cultural?
Conforme definição do antropólogo Rodney William |1|: “a apropriação cultural é um mecanismo de opressão por meio do qual um grupo dominante se apodera de uma cultura inferiorizada, esvaziando de significados suas produções, costumes, tradições e demais elementos. É uma estratégia de dominação que visa apagar a potência de grupos histórica e sistematicamente inferiorizados, esvaziando de significados todas as suas produções, como forma de promover seu genocídio simbólico. Apropriação cultural e racismo são temas imbricados”.
Apropriação cultural consiste em adotar elementos específicos de outra cultura fora do seu específico contexto e significado. Esse assenhoreamento pode se dar no campo do comportamento, da linguagem, da estética, das artes, da música, da religiosidade, da técnica e conhecimento, enfim, de múltiplos aspectos culturais.
A discussão sobre apropriação cultural não é, como aparenta, um purismo cultural pelo qual só podem usufruir de artefatos ou elementos produzidos por uma cultura aqueles que participaram em sua criação. A questão, conforme a pesquisadora de relações raciais Suzane Jardim, é a relação entre grupos hegemônicos e marginalizados, historicamente marcada por etnocentrismo, preconceito e exclusão. Nesse contexto, a apropriação por grupos hegemônicos dos elementos culturais dos grupos subalternizados ressoa como uma nova faceta dessa experiência histórica de dominação.
A ideia de apropriação cultural não deve ser encarada no campo da individualidade, mas como uma questão estrutural relacionada à sociedade de forma sistêmica. A questão que se coloca é que o uso de determinados elementos culturais fora de seu contexto pode ser desrespeitoso com aquele grupo social, ou a imitação pode soar pejorativa e caricata.
Outra reflexão comumente feita é o fato de determinadas culturas não serem bem aceitas por um grupo cultural dominante, porém, em situações de apropriação cultural, traços de sua cultura se tornarem palatáveis àqueles que rejeitam seu grupo originário pelo simples fato de estarem sendo utilizados por pessoas de fora desse grupo.
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Origem da apropriação cultural
O terceiro é que no florescer das democracias representativas liberais, estreitamente ligadas ao capitalismo, formaram-se grupos políticos de pressão e reivindicação de direitos cuja coesão está vinculada a identidades culturais. São os grupos identitaristas vinculados a movimentos sociais, como os movimentos negros, feministas e de diversidade sexual. Nesse contexto, a construção de identidades se reveste de fundamental importância e requer o resgate de práticas e artefatos que remetem a uma conexão profunda com o passado (ancestralidade) na ânsia de produzir significados no presente secularizado.
Assim, a resistência cultural desenvolvida pelos grupos identitários étnico-raciais, por exemplo, busca elementos originários de povos africanos ou de antepassados escravizados no Brasil para ressignificá-los no enfrentamento ao racismo em sua manifestação contemporânea.
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Pontos positivos e negativos
Como ponto positivo, podemos apontar que situações de apropriação cultural possibilitam o diálogo sobre o tema com aqueles que não estão familiarizados. Muitas pessoas praticam apropriação cultural sem terem consciência disso, por isso essa discussão não deve ser reduzida ao campo das relações individuais, tampouco ser norteada pela “política do cancelamento”, mas tratada com ponderação, guardando as devidas proporções de cada situação para não dar lugar à intransigência e desagregação.
Assim, é um momento oportuno à prática da alteridade, para escutar grupos que se sentem constrangidos e repensar práticas que parecem inofensivas, mas para outrem são incômodas, e também para o “letramento racial”, isto é, buscar estudar e compreender os elementos simbólicos de uma etnia à qual você não pertence, mas deseja se aproximar e consumir artefatos. O conhecimento da história e significado do objeto gera aproximação e abre possibilidade para a cooperação com aquele grupo étnico de outras maneiras, como a prática do antirracismo.
Como ponto negativo, quando elementos culturais não brancos são retratados de maneira caricata e estereótipos são reforçados, há a perpetuação do racismo e o esvaziamento do potencial político quando tais elementos são reduzidos a propósitos comerciais.
Consequências da apropriação cultural
Trocas culturais são comuns, constantes e bem-vindas entre diferentes culturas. Qual é a diferença entre troca e apropriação cultural? Na apropriação cultural, existe uma hierarquia bem definida entre os dois povos, de modo que aquele que se apossa dos conhecimentos, símbolos e objetos não oferece uma devolutiva à altura do que recebe – não é uma troca recíproca, mas exploradora. As consequências disso para o povo que sofre esse processo são a expropriação, o esvaziamento, o enfraquecimento, prejuízos num longo arco que vai desde o extremo simbólico do desrespeito, a desarticulação política por direitos até o extremo material de perdas de recursos financeiros, humanos, técnicos, como aponta a professora de Direito Funmi Arewa |2|:
“O empréstimo cultural pode tornar-se apropriação quando reforça relacionamentos historicamente exploradores ou priva os países africanos de oportunidades de controlar ou se beneficiar de seus materiais culturais”.
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Exemplos de apropriação cultural
Um exemplo comum de apropriação cultural é uma pessoa que não comunga de determinada religião utilizar como enfeite cotidiano artefatos que para seus adeptos são sagrados, representam proteção ou ligação com o divino.
Outro exemplo é a caracterização com elementos de uma cultura alheia para entretenimento e diversão, como o blackface, que é se pintar de preto e usar peruca de cabelo crespo. Essa prática era utilizada no Brasil nos anos iniciais da televisão, quando atores negros não eram permitidos em novelas e filmes, por isso atores brancos se caracterizavam dessa forma para fazer papéis de mulatos e escravos.
Há também quem utilize blackface para participar de festas à fantasia como o Carnaval. Se você, ao ler isso, pensa ser um exagero, proponho uma reflexão: você acharia engraçado uma caracterização de um judeu a caminho de um campo de concentração? Se a resposta for não, por que uma caracterização jocosa do cruel período da escravidão brasileira seria aceitável?
Um ambiente propício a práticas de apropriação cultural é o mundo da moda. Um exemplo factual é o episódio em que a estilista francesa Isabel Marant foi acusada de copiar um bordado tradicional feito há mais de 600 anos pela comunidade mexicana Santa-Maria Tlahuitoltepec e utilizá-lo em peças vendidas a preços exorbitantes, que não seriam revertidos de nenhuma maneira em benefícios para a comunidade originária que criou o bordado.
Notas
|1| LIMA, Juliana Domingos de. O que é apropriação cultural e por que o tema vem a tona no Carnaval. Para acessar, clique aqui.
|2| MARTINS, Vinicius. Apropriação cultural: qual é o limite entre brancos e negros. Para acessar, clique aqui.
|1| lazyllama / Shutterstock.com