A teoria das três raças e o mito da democracia racial são uma ideologia da cultura brasileira. Essa teoria enaltece miscigenação como um traço da identidade nacional, resultando no mito da democracia racial. A teoria das três raças e o mito da democracia racial estão em práticas sociais, políticas públicas, discursos literários e artísticos que apresentam uma imagem superficial de harmonia e igualdade entre as raças, mas negligenciam as profundas desigualdades estruturais da sociedade brasileira.
“Teoria das três raças” é um nome muito geral dado para um conjunto de conceitos, argumentos e teses que visam explicar o fenômeno da miscigenação no Brasil. O paradigma das três raças ficou popular porque ajudou muitos intelectuais brasileiros, sobretudo Gilberto Freyre, a argumentar que a mistura de diferentes raças levaria, ao longo da história brasileira, a uma sociedade sem conflitos significativos e caracterizada pela democracia racial.
Leia também: Cultura brasileira — por que tão diversa e tão desigual?
Tópicos deste artigo
Resumo sobre a teoria das três raças e o mito da democracia racial
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O mito da democracia racial é a ideia de que a história e a cultura do Brasil se caracterizam pela harmonia e pela convivência pacífica entre diferentes grupos étnico-raciais.
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A teoria das três raças baseia a divisão racial da sociedade brasileira em três categorias principais e defende que a miscigenação no Brasil é um símbolo de integração e harmonia.
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O mito da democracia racial e a teoria das três raças caminham lado a lado desde a virada do século XIX para o século XX porque ajudaram a construir uma nova ideia de Brasil.
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A ideia de Brasil extraída do mito da democracia racial e da teoria das três raças pode ser encontrada em muitas obras culturais, como livros, peças de teatro, filmes e novelas.
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A obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre difundiu dentro e fora do Brasil o mito da democracia racial e a teoria das três raças.
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Os críticos do mito da democracia racial e da teoria das três raças pretendem revelar a sua contribuição para a persistência das hierarquias raciais e para a justificação de desigualdades.
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O que é o mito da democracia racial e a teoria das três raças?
O mito da democracia racial é a ideia de que a história e a cultura do Brasil se caracterizam pela harmonia e pela convivência pacífica entre diferentes grupos étnico-raciais. A teoria das três raças baseia a divisão racial da sociedade brasileira em três categorias principais e defende que a miscigenação no Brasil é um símbolo de integração e harmonia. O mito da democracia racial e a teoria das três raças foram entrelaçados para dar sentido à construção de um Brasil moderno.
Segundo o historiador José Carlos Reis, “foi o botânico e viajante alemão Karl Philipp von Martius que lançou os alicerces do mito da democracia racial”. Em 1840, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) estabeleceu um prêmio para quem elaborasse o melhor plano para a escrita da história do Brasil. Von Martius foi o vencedor desse prêmio. Cinco anos depois, concluiu a sua monografia “Como se deve escrever a história do Brasil”.|1|
Segundo o professor titular de história moderna da Universidade Federal Fluminense, Ronaldo Vainfas, Martius afirmou que a chave para compreender a história brasileira residia no estudo do cruzamento das três raças formadoras de nossa nacionalidade — a branca, a indígena, a negra —, esboçando a questão da mescla cultural sem, contudo, desenvolvê-la.
Apesar de pensar que a mescla das três raças era o que singularizava a identidade brasileira, Martius argumentou que o branco português foi o conquistador e senhor, motor essencial do Brasil, porque ele defendeu o território, desenvolveu uma economia e implantou os valores católicos.
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Videoaula sobre democracia racial
Gilberto Freyre, a teoria das três raças e o mito da democracia racial
Foi no século XX que o mito da democracia racial ganhou seus contornos mais marcantes. Fundamental para isso foi o tratamento dado por Gilberto Freyre ao tema da miscigenação. Vejamos abaixo uma passagem extraída do livro “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, que foi lido no Brasil e traduzido peara várias línguas:
Talvez em parte alguma se esteja verificando com igual liberalidade o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura, como no Brasil. […] Mas não se pode acusar de rígido, nem de falta de mobilidade vertical o regime brasileiro, em vários sentidos sociais um dos mais democráticos, flexíveis e plásticos.|2|
Trata-se da afirmação contundente de uma democracia racial no Brasil, embora a palavra raça não seja mencionada. Uma importante contribuição de Gilberto Freyre foi a de ultrapassar o conceito de raça até então vigente no pensamento social. No lugar da ideia de raça, Gilberto Freyre adotou o conceito de cultura, fruto de sua formação na antropologia de Franz Boas, nos Estados Unidos, o que lhe permitiu entrelaçar a miscigenação biológica com a mescla cultural.
Esse deslocamento rompeu com uma tradição de pensamento social brasileiro que legitimava o racismo científico, isto é, teorias biologizantes que preconizavam uma suposta inferioridade natural do negro como forma de justificar a escravidão nas Américas. Nas teses de Gilberto Freyre, as pessoas negras aparecem dando importantes contribuições para a construção do Brasil: “maior, em certo sentido, que a do português”.|3|
Segundo Freyre, a potencialidade da cultura brasileira reside “na riqueza de antagonismos equilibrados”. Se nos Estados Unidos — argumenta Freyre — as raças se tornaram inimigas, os ex-senhores e os ex-escravos, ao ponto de se odiarem e não se misturarem, o Brasil é marcado pela convivência harmoniosa entre brancos e pretos e pela ausência de leis segregacionistas explícitas. No Brasil, “somos duas metades confraternizantes que se veem mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos completamos num todo, não será com o sacrifício de um elemento ao outro.”|4|
Esse país, o Brasil moderno, desconheceria preconceitos porque, na verdade, ele é uma grande confraternização racial nos trópicos. As festas populares, o Carnaval e a ginga inconfundível dos nossos campeões de futebol, quase todos eles mestiços, pessoas morenas, são exemplos de como a miscigenação foi boa para o país. Essa imagem do Brasil, embora pareça um devaneio, foi muito difundida pelo Estado e pelos meios de comunicação durante todo o século XX.
Nesse período, o Brasil sofreu mudanças profundas, passando de uma economia escravista para outra de tipo capitalista. O processo de industrialização e urbanização se acelera, uma classe média se desenvolve e, a partir do incentivo da imigração, surge um proletariado urbano. Segundo o antropólogo Renato Ortiz, é nesse momento que o mito da democracia racial vai sugerir um novo ponto de origem para o moderno Estado brasileiro.|5|
Confira em nosso podcast: Democracia racial no Brasil
Darcy Ribeiro e o mito das três raças e da democracia racial
Darcy Ribeiro, antropólogo brasileiro do século XX, foi um dos críticos mais contundentes do mito das três raças. Ele também atuou como político e defendeu em seus livros e discursos uma abordagem mais ampla para entender a realidade brasileira, que levasse em consideração não apenas as questões raciais, mas também dimensões econômicas e culturais relativas à classe e ao gênero.
Diferente de Gilberto Freyre, que busca resolver os antagonismos, Darcy Ribeiro nos estimula a pensar a realidade brasileira dialeticamente, o que significa colocar em perspectiva histórica o seu caráter de permanente contradição e tensão. Com isso, é problematizada nossa constituição étnica e sociocultural assentada na teoria das três raças. Darcy Ribeiro defende que a mestiçagem foi forjada na usurpação e domesticação do negro e do índio, o que rompe com a lógica de que somos todos iguais por sermos “mestiços”.
Apesar de bárbara, a exploração de negros e índios é contada de maneira pacífica e romantizada, é naturalizada e concebida como um dos argumentos ideológicos para uma suposta igualdade entre os brasileiros. Como resultado, em contraposição ao mito das três raças e da democracia racial, teríamos, segundo Darcy, uma subtração ao invés de soma, a formação de uma comunidade de não indígenas, não europeus e não negros, de onde surge o mestiço.
Darcy Ribeiro, em seu livro “Moinhos de Gastar Gente”, ao tratar sobre a mestiçagem, elabora assim o nosso dilema: “o brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasilíndio mestiço na carne e no espírito […] via-se condenado à pretensão de ser o que não era nem existia: ‘o brasileiro’, porque ele desprezava seus antepassados indígenas e era rejeitado pelos europeus”.|6|
O autor revelou as linhas coloniais e elitistas por trás do mito das três raças, visão simplista demais para dar conta de uma realidade muito mais complexa. Na visão dele, a miscigenação aconteceu, mas ela não eliminou a hierarquia racial e as opressões associadas a ela. Mesmo com a mistura de raças, argumentou Darcy Ribeiro, a estrutura social brasileira ainda era profundamente marcada pela desigualdade. Enquanto a população negra e indígena sofre com a marginalização, a população branca ocupa posições de poder e desfruta dos seus privilégios. Para saber mais sobre as ideias de Darcy Ribeiro, clique aqui.
Outras críticas ao mito da democracia racial e das três raças
A forte miscigenação entre brancos e não brancos no Brasil diversificou a palheta de cores de nossa sociedade. Mas apenas a miscigenação é insuficiente para afirmar a existência de uma “democracia racial” no Brasil.
O mito da democracia racial pode ser comparado a um enorme iceberg. Apenas uma pequena parte fica visível na superfície, enquanto a maior parte fica oculta debaixo d’água. Assim como o iceberg esconde a sua verdadeira extensão, o mito da democracia racial mascara as injustiças raciais subjacentes na sociedade. O mito da democracia racial serve para chamar a nossa atenção para fatos como ausência de um Apartheid legal entre nós, que representam apenas a ponta do iceberg, enquanto nega a existência de um racismo estrutural.
Segundo Kabengele Munanga, pensador negro e professor da Universidade de São Paulo, o mito da democracia racial é sustentando pela ideia de uma intensa mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias. Ele promove a ideia de uma convivência harmoniosa entre indivíduos de todas as classes e etnias. No entanto, isso permite às elites dominantes dissimular as desigualdades, encobrir os conflitos raciais e impedir que os membros de comunidades não brancas tenham consciência dos mecanismos de exclusão de que são vítimas.
A teoria das três raças é como um quebra-cabeça em que apenas três peças são consideradas e o restante é deixado de lado. Ela ignora a diversidade dos povos originários, todos chamados de índios pelos europeus, mesmo tendo apresentado características diferentes. Ela desconsidera que os portugueses invasores que chegaram aqui já resultavam de uma significativa miscigenação entre visigodos, mouros e judeus.
Os africanos trazidos como escravos foram extraídos de várias nações: angolas, benguelas, cabindas, congos, minas, iorubas, jejês, nagôs, etc. Diversas etnias enriqueceram ainda mais a cultura brasileira ao longo dos séculos: italianos, japoneses, chineses, alemães, sírios, libaneses. A teoria das três raças é uma abordagem reducionista que ignora a real diversidade de etnias e origens do povo brasileiro, o que torna invisíveis os grupos étnicos não contemplados por ela.
Atualmente, no campo de estudos sobre relações raciais, que está em constante evolução, esse paradigma das três raças foi superado. O mito da democracia racial e a teoria das três raças são considerados parte de uma mesma ideologia fabricada por elites brancas para legitimar as hierarquias de uma ordem social racista, patriarcal e autoritária.
É verdade que o Brasil é um país diferente por causa da miscigenação, mas nada mais equivocado do que concluir que não somos racistas por isso. A história das três raças, e o mito da democracia racial construído sobre ela, são engrenagens importantes do sistema racista que funciona no Brasil. Esse sistema ideológico impede que pessoas negras enxerguem a sua negritude e que pessoas brancas se percebam como racistas.
Leia também: O que pode ser considerado racismo?
O mito das três raças e da democracia racial na literatura
Alguns escritores modernistas abraçaram a concepção de uma suposta harmonia racial e cultural. Isso pode ser observado em romances do período modernista, como “Macunaíma”, de Mário de Andrade, que explora o sincretismo cultural e a miscigenação racial como elementos-chave da identidade brasileira: “no meio da mata virgem onde tudo é selvagem, na boca do Amazonas, região deserta e opaca, Macunaíma nasceu preto retinto. Era filho do medo da noite”.
A partir das décadas de 1960 e 1970, a literatura brasileira passou a dar ainda mais voz às experiências e perspectivas das pessoas negras e indígenas. Surgem então autores como Conceição Evaristo, Cuti, Abdias do Nascimento, Eliane Potiguara e Carolina Maria de Jesus. Eles trouxeram narrativas que desafiavam a visão harmoniosa das raças e negavam o mito da democracia. Confira uma lista de obras de arte de diferentes gêneros que abordam o mito das três raças e da democracia racial.
Livros:
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“Macunaíma” – Mário de Andrade
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“O Mulato” – Aluísio Azevedo
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“Quarto de Despejo: diário de uma favelada” – Carolina Maria de Jesus
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“A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água” – Jorge Amado
Novelas:
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“Sinhá Moça” – 1986
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“Da Cor do Pecado” – 2004
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“Nos Tempos do Imperador” – 2021
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“Orfeu Negro” – 1959
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“Xica da Silva” – 1976
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“O Auto da Compadecida” – 2000
Músicas:
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“Aquarela Brasileira” – Silas de Oliveira
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“Brasil Pandeiro” – Assis Valente
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“Canto das Três Raças” – Clara Nunes
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“Meu Ébano” – Alcione
Notas
|1| REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
|2| FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006. p. 115
|3| FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006. p. 368
|4| FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006. p. 376
|5| ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 38.
|6| RIBEIRO, D. Moinhos de Gastar Gente.; Classe, cor e preconceito.; Ordem versus Progresso. In: ______. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 106
Fontes
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
RIBEIRO, D. Moinhos de Gastar Gente.; Classe, cor e preconceito.; Ordem versus Progresso. In: ______. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.