A segregação racial consiste na separação de determinado grupo social por conta de suas características físicas, seu fenótipo. Essa prática é baseada em ideários higienistas, que classificam a humanidade em raças, atrelando traços culturais, intelectuais e habilidades a fatores biológicos e genéticos. A eugenia gerou muitas catástrofes ao longo da história — guerras, colonizações, escravidão, genocídio — como o nazismo, que exterminou mais de oito milhões de pessoas, entre judeus, ciganos, negros, homossexuais.
Os efeitos da segregação racial foram muito severos em países como EUA e África do Sul, pautados por legislações segregacionistas. No Brasil, após a abolição da escravatura, esse fenômeno fortaleceu-se no tecido social e nos meandros culturais pela inação estatal em relação à população negra.
Origem da segregação racial
A segregação racial é um fenômeno milenar. Em toda a história humana, há exemplos de determinados grupos étnicos subjugados por outros com implicações de mobilidade geográfica e social. As três nações que serão especificamente mencionadas neste texto têm como ponto comum a fundação colonial ancorada num sistema econômico escravagista como origem histórica de sua experiência de segregação, principalmente nos séculos XIX e XX.
No século XXI, os movimentos migratórios ao redor do mundo têm despertado em alguns países o nacionalismo exacerbado e manifestações de xenofobia, o que também conflui para segregação de estrangeiros em guetos e discriminação étnico-racial.
Formas de segregação
A segregação racial pode dar-se de maneira formal e informal, por meio de leis, repressão violenta ou de regras culturais de convivência.
Se observarmos países em que ocorreu segregação institucional, como a África do Sul, veremos que, durante o apartheid, havia uma legislação discriminatória nas mais diversas áreas; remoções forçadas; detenções sem julgamento; repressão estatal à livre circulação por meio de leis de passe, pelas quais só seria possível ir a determinadas regiões portando autorização que deliberadamente não era concedida; e proibições sociais e econômicas, como realizar casamentos inter-raciais, frequentar lugares públicos e candidatar-se a trabalhos industriais.
As formas culturais de segregação manifestam-se sem necessariamente valer-se de dispositivos legais ou repressão para que sejam cumpridas. Sua força reside em constranger indivíduos segregados a compreenderem sua exclusão como consequência de erros pessoais ou como um destino natural reservado a eles. Elas se somam a mecanismos institucionais que bloqueiam, por exemplo, a ascensão econômica, intelectual e política de determinados grupos étnicos.
Segregação racial nos Estados Unidos
O território hoje pertencente ao país Estados Unidos era habitado por indígenas que foram dizimados, recebeu expedições francesas, espanholas, holandesas, mas sua colonização foi empreendida por ingleses, que nele se instalaram e formaram as Treze Colônias. Estas se uniram e declararam a independência do país em 1776 e, em 1788, promulgaram a Constituição.
Território vasto, houve um desenvolvimento diferente nas regiões sul e norte. As grandes propriedades agrárias do sul (plantations) tinham como base do sistema produtivo a escravidão de africanos cativos e seus descendentes. Os escravizados não tinham direito ao voto, portanto, não tinham força política para reivindicar medidas contrárias à escravidão no âmbito federal. Os estados do norte não praticavam a escravidão, seu modelo econômico era baseado na pequena propriedade e no trabalho livre e assalariado, mas se abrigassem escravizados fugitivos, por lei eram obrigados a devolvê-los.
A escravidão praticada nos estados do sul foi abolida mediante guerra civil, a chamada Guerra da Secessão, entre 1861 e 1865, em que estados do norte, comandados pelo presidente Abraham Lincoln, enfrentaram os estados confederados do sul que objetivavam fundar uma confederação separatista. Os estados do norte venceram a guerra, a escravidão foi imediatamente abolida, mas os brancos sulistas buscaram maneiras de segregar os negros recém-libertos. Em 1865 foi fundada, por um ex-combatente das tropas sulistas, a Ku Klux Klan, grupo supremacista que praticava ações violentas contra negros. Embora reprimida pela polícia, essa seita ganhou milhares de adeptos.
O historiador Leandro Karnal ilustra a amplitude desse princípio que ficou conhecido como Lei Jim Crow|1|: “afastamento entre negros e brancos nos trens, estações ferroviárias, cais, hotéis, barbearias, restaurantes, teatros, entre outros. Em 1885, a maior parte das escolas sulistas também foram divididas em instituições para brancos e outras para negros”.
O racismo promovido por leis discriminatórias cristalizou-se e normalizou-se nos estados do sul, definindo-se o compartilhamento de espaços públicos e a divisão geográfica, mesmo de bairros residenciais, pela cor. Negros tinham que usar banheiros separados, estudar em escolas separadas, jurar em bíblias separadas num tribunal, comprar roupas sem poder provar, comprar comida sem poder sentarem-se nas mesas exclusivas para brancos, não eram hospedados em hotéis, e deviam sentar-se no fundo dos ônibus e trens.
O episódio que impulsionou os movimentos contra a segregação ocorreu em Montgomery e foi protagonizado por Rosa Parks. Ela não aceitou ceder seu assento numa viagem de ônibus a um passageiro branco. Essa atitude desencadeou manifestações e um boicote de 382 dias ao transporte coletivo. Em 1956, um ano depois, a Suprema Corte norte-americana decidiu pela ilegalidade de segregação racial em locais públicos, uma vitória do movimento negro.
Esse tema foi enfrentado por movimentos reivindicatórios dos direitos civis para negros por meio de marchas, boicotes, ações judiciais e mesmo ações violentas. Havia o movimento de desobediência civil, cujo principal líder foi o pastor Martin Luther King Jr. Também havia o movimento adepto de luta armada, formado por negros muçulmanos e liderado por Malcolm X, chamado Panteras Negras. A ativista Angela Davis participou desse movimento.
O princípio “separados, mas iguais” só foi abolido pela Suprema Corte norte-americana nas décadas de 1950 e 1960. Em 1964 Martin Luther King Jr. foi premiado com o Nobel da Paz por sua luta pacifista contra o racismo. Também nesse ano foi promulgada a Lei de Direitos Civis, que baniu todas as formas de segregação racial, no ano seguinte, 1965, os negros sulistas conquistaram o direito ao voto.
Segregação racial na África do Sul
A África do Sul foi formada por inúmeros povos, tanto nativos quanto migrantes, e a segregação racial nesse país foi fundada no duplo processo de colonização, holandesa e inglesa, e na escravidão. Parte de seu território foi, por muito tempo, ponto de reabastecimento para expedições de diferentes partes da Europa em direção à Índia. No século XVII, foi colonizada por holandeses da Companhia Holandesa das Índias Orientais, de orientação religiosa calvinista, que quase exterminaram etnias nativas, como os khoisan, e importaram escravizados de outros lugares: Indonésia, Madagascar, Índia.
Já ao final do século XVII, houve ocupação britânica no território sul-africano, o que gerou a Guerra Anglo-Holandesa, da qual a Inglaterra saiu vencedora. No século XIX, em 1835, a escravidão foi abolida e os colonos de origem holandesa, e em menor parte francesa ou alemã (bôeres), migraram para o interior, fundando novas repúblicas. Ao longo do processo de colonização, ocorreram guerras entre colonos e nativos, por exemplo entre os britânicos e o povo zulu, e entre colonos de diferentes ascendências, como britânicos e holandeses.
As guerras eram motivadas pela dominação territorial, pela escravização e pela exploração de ouro e diamante, descobertos na segunda metade do século XIX. Nas repúblicas bôeres, extensão informal do Império britânico, já existiam práticas que, mais tarde, seriam oficialmente adotadas no apartheid, como o confinamento de negros. Estes eram essenciais na sustentação do sistema econômico por meio do seu trabalho, mas eram excluídos do sistema político e social.
Em 1912 foi fundado o Congresso Nacional Sul-Africano (ANC), partido nacionalista que tentava angariar apoio na opinião pública para modificar por vias legais as injustiças cometidas contra negros naquele país, porém sem grande êxito. Entre 1939 e 1948, a segregação racial foi intensificada. A incapacidade do governo em controlar as migrações teve como consequência a favelização e proletarização de comunidades negras nos grandes centros urbanos, o que intensificava as tensões raciais.
Além disso, o Partido Nacional, que liderava o governo, expandiu a legislação segregacionista, limitando ou mesmo barrando o acesso dos negros “ao trabalho, moradia, uso da terra, educação, serviços de saúde e representação política”|2|. Isso era o “pequeno apartheid”, isto é, medidas específicas de segregação que modificavam o cotidiano da população negra.
Os negros sul-africanos foram privados de direitos civis fundamentais, como a liberdade de expressão e de locomoção, e de direitos políticos. Em 1949 casamentos inter-raciais foram proibidos, e, a partir de 1950, o censo categorizou a população em três raças: brancos, mestiços (coloureds) e africanos, e o território das reservas foi dividido em oito áreas denominadas homelands, administradas por bantos sob tutela dos brancos, onde os negros deveriam ficar confinados. O objetivo é que fossem Estados negros dominados pelo poder central, mas geograficamente separados, assim poderiam explorar sua mão de obra no setor agrícola e minerador e ao mesmo tempo ter uma África do Sul branca.
Além de segregação, eram feitas remoções de negros para essas reservas, ao ponto de um negro ser proibido de estar mais de 72 horas em área urbana, caso desobedecesse poderia ser preso. Em 1953 foi criado um sistema educacional específico para negros, com formação inferior ao sistema educacional dos brancos (africânderes). Além disso, negros não podiam compartilhar os mesmos espaços públicos que os brancos nem competir nos mesmos times em atividades desportivas, tampouco compartilhar os mesmos meios de comunicação.
A tentativa de conter o fluxo da população negra não funcionou, mesmo porque as homelands eram desassistidas pelo poder central, tinham precárias condições econômicas e sanitárias, havia subnutrição e surtos de tuberculose. Os africanos passaram a deixar essas áreas e irem para as cidades.
A partir de 1940, com a ascensão da Liga da Juventude, liderada por Nelson Mandela, o partido ANC começou a mobilizar os negros sul-africanos. Mandela e outras lideranças eram influenciados pela filosofia da não violência de Gandhi, que inspirou suas táticas de desobediência civil e manifestações pacíficas na oposição às leis discriminatórias. Esse grupo foi reprimido violentamente e o partido foi cassado.
O Massacre de Sharpeville, em 1960, culminou na morte de 69 ativistas e elevou o movimento anti-apartheid ao conhecimento internacional e a angariar apoio, inclusive do Reino Unido. Na clandestinidade e diante de repressão violenta, o movimento sentiu a necessidade de lançar mão da luta armada.
Mandela fez uma viagem internacional em busca de apoio ao movimento anti-apartheid. Ao retornar, foi preso e condenado à prisão perpétua. Os líderes do movimento que se exilaram angariaram apoio internacional, ao ponto de o governo sul-africano criar um serviço secreto de atuação externa ao país para reprimir atividades anti-apartheid.
A partir de 1966, para melhorar a imagem internacional do país, o regime passou a remover leis segregacionistas aos poucos. Somados à repercussão internacional, a estagnação econômica que ocorreu na década de 1970, o crescimento da população negra urbana e a escassez de mão de obra qualificada para a indústria e mesmo de militares para o exército (já que somente brancos podiam alistar-se) promoveram a desestabilização do regime de apartheid.
Nesse período ocorreu o fortalecimento do movimento negro, ao ponto de, em 1976, ocorrer a Revolta de Soweto, uma série de rebeliões sem precedentes que começou com estudantes negros, alastrou-se pelo país e conseguiu a adesão de diversos grupos, como sindicatos, associações comunitárias, igrejas, organizações políticas. A percepção de que o domínio branco não era imbatível e o fortalecimento da militância negra naquele contexto de instabilidade econômica levaram a inúmeros protestos e greves que se multiplicaram nos anos 1980. O país era considerado pária internacional por conta do regime de apartheid e passou a sofrer sanções.
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Segregação racial no Brasil
Cidadania aqui abrange desde o direito ao voto até condições dignas de vida, moradia, saúde, emprego, renda, educação. Depois da abolição, os negros foram deixados à própria sorte, sua mão de obra foi substituída por imigrantes europeus, e aos ex-escravizados restou alocarem-se nas periferias das cidades, sem acesso a serviços públicos, e ocuparem funções subalternas e informais que exigiam maior tempo de trabalho e menores remunerações.
O sociólogo Danilo França aponta a segregação como um mecanismo seletivo no acesso ao mercado de trabalho, a serviços públicos, a recursos, ao consumo e à cultura. A própria configuração espacial de ocupar lugares distantes dos centros de acesso a oportunidades e a lazer traduz uma política segregacionista, posto que restringe a circulação de certos grupos em determinados pontos da cidade.
A concentração de renda e a desigualdade socioespacial têm uma forte ligação com o fator raça, mas, diferentemente dos exemplos de países anteriores, no caso brasileiro não houve uma legislação segregacionista após a abolição, o que gerou esse resultado foi a ausência de políticas públicas que efetivassem a igualdade formal.
O grande intelectual Abdias do Nascimento assim definiu o racismo brasileiro|3|: “não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas eficazmente institucionalizado nos níveis oficiais de governo assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país”.
Consequências da segregação racial
Uma das principais consequências da segregação racial é a desigualdade social. Na África do Sul, por exemplo, os brancos eram prósperos como os europeus ou norte-americanos, enquanto os negros viviam nas reservas nativas sem acesso a serviços públicos, sem boa formação educacional, sem direitos políticos e acesso aos empregos urbanos, melhor remunerados.
Isso gerou uma profunda desigualdade social e econômica naquele país e o mesmo ocorre em outras experiências históricas de segregação. A desigualdade materializa-se em diversos aspectos, como expectativa de vida, renda média, acesso a serviços públicos como saúde e educação, segurança, natalidade, entre tantos outros fatores que compõem a qualidade de vida.
Outro aspecto em que a segregação racial incide é na mobilidade social da população segregada. O acesso precário a emprego, educação de qualidade, serviços públicos e atividades culturais restringe as possibilidades de ascensão social e faz com que, por gerações, permaneça-se nas mesmas condições materiais de vida.
A segregação racial gera violência e permanentes tensões que, sob determinadas condições, transformam-se em convulsões sociais e acarretam mortes, danos à integridade física, danos patrimoniais, instabilidade social e política.
Engana-se quem pensa que a segregação racial prejudica somente ao grupo segregado. A sociedade como um todo perde ao confinar determinado grupo, pois as consequências da desigualdade em algum momento crescerão ao ponto de atingirem aqueles que se beneficiam dessa exclusão. Além disso, o afunilamento do acesso educacional, cultural e político faz com que a sociedade desperdice um imenso potencial humano, inteligência, capacidades, ideias que, limitadas por barreiras externas, não são desenvolvidas em sua plena potência.
Notas
|1| KARNAL, Leandro [et al.]. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007.
|2| Neto, 2010, p.49. O caso do apartheid na África do Sul. Disponível em:
|3| NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 92.